葡语书名:Viagens na Minha Terra
作者: Almeida Garret
Capítulo 1(接葡语书籍朗读- 1. Viagens na Minha Terra )
-“ A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um governo de patuscos, que é o mais odioso e engulhoso dos governos possíveis.”
É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viagem acudiu ao princípio de
ponderação que ia involuntariamente fazendo a respeito de Vila Franca.
Mas eu não tenho ódio nenhum a Vila Franca, nem a esse famoso círio que lá foi fazer a monarquia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por força havia de suceder. Este necessário e inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há de levar muito tempo, há de ser contrastado por muita reação antes de completar-se...
No entretanto, vamos acender os nossos charutos, e deixe-mos os precintos aristocráticos da ré; à proa, que é país de cigarro livre.
Não me lembra que Lorde Byron celebrasse nunca o prazer de fumar a bordo. É notável o esquecimento no poeta mais embarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o enjôo, a mais prosaica e nauseante das misérias da vida! Pois num dia destes, sentir na face e nos cabelos a brisa refrigerante que passou por cima da água enquanto se aspiram molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro de Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que há no mundo.
Fumemos!
Aqui está um campino fumando gravemente o seu cigarro de papel, que me vai emprestar lume.
— “ Dou-lho eu, senhor...” — acode cortesmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do moçarabe ribatejano.
Acenderam-se os charutos, e atentamos mais devagar na companhia que estávamos.
Era um efeito notável e interessante o grupo a que nos tínhamos chegado, e destacava
pitorescamente do resto dos passageiros, mistura híbrida de trajos e feições descaracterizadas e vulgares — que abunda nos arredores de uma grande cidade marítima e comercial. Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava ele de uns doze homens, cinco eram desses famosos atletas da Alhandra, que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum na praça de Santana, e que, à voz soberana e irresistível de: unha, à unha, à cernelha!... correm a arcar com mais generosos , não mais possantes, animais que eles, ao som das imensas palmas, e a troco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio entusiasmo das multidões. Voltavam à sua terra os meus cinco lutadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da véspera. Mas ao pé
destes cinco e de altercação com eles — já direi por quê — estavam seis ou sete homens que em tudo pareciam seus antípodas.
Em vez do calção amarelo e da jaqueta de ramagens que caracterizavam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da família pelasga: feições regulares e móveis, a forma ágil.
Ora os homens do Norte estavam disputando com os homens do Sul: a questão fora
interrompida com a nossa chegada à proa do barco. Mas um dos ílhavos — bela e poética figura de homem — voltando-se para nós, disse naquele seu tom acentuado.
— Ora aqui está quem há de decidir: vejam os senhores. Eles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais que ninguém, que não há quem lhes chegue. E os senhores, a serem cá de Lisboa, hão de dizer que sim. Mas nós...
— Nenhum de nós é de Lisboa: só este senhor que aqui vem agora.
Era o C. da T. Que chegava.
— Este conheço eu; este é dos nossos (bradou um homem de forcado, assim que o viu). Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi numa ferra, isso é verdade; mas aqui de Valada a Almerim ninguém corre mais do que ele por sol e chuva, e há de saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.
— Pois oiçamos lá a questão.
— Não é questão — tornou o ílhavo — mas se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! mas
não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e fez terra das areias da charneca.
— Lá isso é verdade.
— Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoura que a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não fazem eles, que nem sabem ter mão nesses mouchões com o plantio das árvores: só lá por cima é que algumas têm metido, e é bem pouco para o rio que é, e as ricas terras que lhes levam as enchentes. Mas nos , pé no barco, pé na terra, tão depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por aí abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar na areia por não haver água... mas sempre labutando pela vida...
— A força é que se fala — tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha.
— A força é que se fala: um homem do campo que se deita ali à cernelha de um toiro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!...
E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante. que achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado a ouvir os debates.
Os ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciência de sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se no burburinho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes razões dos seus oradores.
Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:
— Então agora como é e força, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais força, se é um toiro ou se é o mar.
— Essa agora!...
— Queríamos saber.
— É o mar.
— Pois nós que brigamos com o mar, oito a dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é o que tem mais força?
Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo.